O dia 18 de maio marca o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil. A campanha visa mobilizar, sensibilizar e informar a sociedade sobre a necessidade de proteger crianças e adolescentes contra qualquer forma de violência sexual, além de incentivar denúncias e fortalecer redes de proteção. A reportagem do Jornal Cidades do Vale procurou profissionais ligados diretamente com o assunto. Confira a entrevista na íntegra com o juiz da Comarca de Faxinal do Soturno, Rodrigo Antola Aita, com a psicóloga do Creas, Carine Michelon de Oliveira, e o assistente social, Rafael Almeida.
Juiz Rodrigo Aita destaca desafios e avanços no combate ao abuso sexual infantil
“Temos observado um crescimento no número de denúncias de crimes sexuais contra crianças e adolescentes. No entanto, isso não significa, necessariamente, que os casos estejam aumentando. Muitas vezes, o que cresce é a conscientização da população sobre a importância de não silenciar diante da violência”
JCV - O número de denúncias vem aumentando ou diminuindo nos últimos anos?
Juiz Rodrigo: Temos observado um crescimento no número de denúncias de crimes sexuais contra crianças e adolescentes. No entanto, isso não significa, necessariamente, que os casos estejam aumentando. Muitas vezes, o que cresce é a conscientização da população sobre a importância de não silenciar diante da violência. Campanhas como o Maio Laranja, programas escolares e o fortalecimento das redes de proteção têm contribuído para que mais vítimas, familiares e profissionais se sintam encorajados a denunciar. A Constituição Federal é clara ao afirmar que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual infantil” (art. 227, §4º), e é essencial que toda a sociedade se mobilize para dar efetividade a esse comando.
JCV - Quais são os maiores desafios que o sistema de Justiça enfrenta ao lidar com esses casos?
Juiz Rodrigo: Os desafios são muitos e exigem uma resposta articulada de diversas instituições. Em primeiro lugar, é necessário informar e educar a população sobre o problema, os sinais de alerta e os canais adequados de denúncia. Em segundo, é fundamental agir com rapidez para proteger a vítima, especialmente com a realização imediata do exame de corpo de delito e de outras providências que garantam a produção da prova. Em terceiro lugar, a escuta da criança ou adolescente precisa ocorrer de forma protegida e humanizada, por meio do depoimento especial — um procedimento previsto na Lei nº 13.431/2017, que evita a revitimização e busca preservar a integridade emocional da vítima. Por fim, o processo judicial precisa ser célere e eficiente, com uma resposta penal proporcional, de modo a evitar a impunidade e prevenir novos abusos.
JCV - O doutor acredita que as leis brasileiras são suficientes para proteger as crianças vítimas de abuso?
Juiz Rodrigo: Sim. A legislação brasileira é bastante avançada no enfrentamento à violência sexual infantil. Temos, por exemplo, a Lei nº 13.431/2017, que instituiu um sistema de garantia de direitos para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, prevendo mecanismos como o depoimento especial. Há também leis específicas, como a chamada “Lei Henri Borel” (Lei nº 14.344/2022), além de alterações no Código Penal e no Código de Processo Penal, que endureceram as penas e estabeleceram tramitação prioritária para esses casos. O desafio maior está em garantir a efetiva aplicação dessas normas: é preciso investir em capacitação, estrutura física, profissionais...
JCV - Em cidades pequenas, há dificuldades específicas para garantir o sigilo e a proteção das vítimas?
Juiz Rodrigo: Sim, há desafios particulares em municípios menores. A legislação determina o segredo de justiça em processos que envolvem crimes sexuais, especialmente quando as vítimas são crianças ou adolescentes. Contudo, em cidades pequenas, em que as relações são próximas e as pessoas compartilham os mesmos espaços, é mais difícil manter o sigilo informal. Muitas vezes, informações circulam entre vizinhos ou familiares, o que pode expor a vítima e comprometer seu bem-estar emocional. Por isso, é ainda mais importante que todos os profissionais envolvidos — autoridades, escolas, serviços de saúde, familiares — atuem com máxima responsabilidade e discrição, evitando qualquer tipo de exposição indevida.
JCV - Quanto tempo, em média, leva um processo judicial envolvendo abuso infantil até uma decisão final?
Juiz Rodrigo: É difícil estabelecer uma média de tempo, porque cada caso possui suas especificidades. Aspectos como a necessidade de perícias, avaliações psicológicas, número de testemunhas e complexidade dos fatos influenciam diretamente na duração do processo. No entanto, na Comarca de Faxinal do Soturno, temos trabalhado com absoluta prioridade nesses casos, conforme prevê a lei. Nossa meta é garantir a tramitação mais célere possível, sem prejuízo à qualidade da apuração. Vale destacar também que, em muitos casos, o relato da violência só vem à tona muitos anos depois do ocorrido, o que naturalmente impacta o tempo total entre o fato e a sentença. Ainda assim, é dever do sistema de Justiça manter o foco na proteção da vítima e na responsabilização dos agressores.
JCV - O silêncio e o medo ainda são barreiras para que os abusos sejam denunciados? Como lidar com isso?
Juiz Rodrigo: Infelizmente, sim. O medo do agressor, que muitas vezes é alguém próximo ou até mesmo integrante da família, é uma barreira significativa. Soma-se a isso o sentimento de culpa ou vergonha que, por vezes, é indevidamente imposto à vítima. A criança ou adolescente pode temer não ser acreditada, sofrer represálias ou desestabilizar o ambiente familiar. Por isso, é essencial que se crie uma cultura de acolhimento e escuta. Pais, responsáveis, professores e profissionais da saúde devem estar atentos a sinais sutis e oferecer um espaço seguro para que a criança fale. Não se deve jamais culpabilizar a vítima, mas sim garantir que ela se sinta protegida e amparada ao relatar o que vivenciou.
JCV - Como a população pode colaborar com a prevenção e combate ao abuso infantil?
Juiz Rodrigo: A principal forma de colaboração da população é o conhecimento. Informar-se sobre o tema, participar de campanhas de conscientização, como o Maio Laranja, e, sobretudo, manter um diálogo aberto e acolhedor com as crianças e adolescentes. É importante que eles saibam que podem contar o que sentem e o que vivenciam, sem medo de punições ou julgamentos. Outro ponto essencial é a vigilância responsável: ao notar comportamentos suspeitos ou mudanças bruscas no comportamento de uma criança, deve-se procurar ajuda e comunicar às autoridades. O Disque 100 é um canal gratuito, sigiloso e acessível para denúncias. Também é possível acionar a Polícia Civil, Brigada Militar ou o Conselho Tutelar.
JCV - Algo que queira acrescentar?
Juiz Rodrigo: Gostaria de enfatizar a importância da união de esforços. O combate à violência sexual contra crianças e adolescentes não é responsabilidade apenas da Justiça ou da polícia — é um dever de toda a sociedade. Campanhas como o Maio Laranja têm justamente esse objetivo: mobilizar a comunidade para proteger quem é mais vulnerável. É fundamental que órgãos públicos, escolas, entidades sociais e famílias atuem em conjunto. E, claro, que se tenha a sensibilidade de que, tão importante quanto responsabilizar um agressor, é evitar que se cometa uma injustiça com alguém inocente. Por isso, é essencial agir com responsabilidade, denunciar às autoridades competentes e confiar nos instrumentos legais de investigação e julgamento.
Psicóloga Carine M. de Oliveira explica sinais, impactos e desafios no atendimento a crianças vítimas de abuso
“Reconhecer os sinais de abuso em uma criança exige muita atenção e cuidado, porque esses sinais nem sempre são claros. No entanto, alguns desses sinais emocionais podem ser de a criança ficar muito ansiosa, com medo exagerado, especialmente de adultos ou de certas situações, além de momentos de tristeza com maior frequência ou ter dificuldade de dizer o que está sentindo”.
JCV - Quais são os principais sinais emocionais e comportamentais que podem indicar que uma criança está sendo vítima de abuso?
Carine: Essa é uma pergunta muito importante. Reconhecer os sinais de abuso em uma criança exige muita atenção e cuidado, porque esses sinais nem sempre são claros. No entanto, alguns desses sinais emocionais podem ser de a criança ficar muito ansiosa, com medo exagerado, especialmente de adultos ou de certas situações, além de momentos de tristeza com maior frequência ou ter dificuldade de dizer o que está sentindo. Como ela não consegue expressar isso com palavras, às vezes acaba ficando mais agressiva, mudando de humor de forma repentina ou se isolando. Nos sintomas comportamentais, o corpo da criança também pode mostrar que algo não vai bem. Muitas vezes, ela demonstra o que está vivendo através de desenhos, brincadeiras com conteúdo sexual que não combinam com a sua idade. Também é comum ter dificuldades para dormir, voltar a fazer xixi na cama (mesmo já tendo passado dessa fase) ou apresentar machucados sem explicação, dores frequentes ou infecções, especialmente nas partes íntimas. Outro sinal importante é quando a criança começa a usar palavras com conteúdo sexual ou perde o interesse pelos estudos de forma repentina. É essencial que os adultos que convivem com essa criança, sejam pais, professores ou cuidadores, fiquem atentos a essas mudanças. Ninguém conhece melhor uma criança do que quem está com ela no dia a dia. Se surgir qualquer suspeita, o mais importante é ouvir com carinho, sem julgar, e buscar ajuda profissional o quanto antes. O cuidado e a proteção da criança devem estar sempre em primeiro lugar.
JCV - Como o abuso infantil impacta o desenvolvimento psicológico da criança a curto e longo prazo?
Carine: O impacto do abuso sexual infantil no desenvolvimento psicológico da criança pode ser diverso e poderá também durar a vida toda, se não houver ajuda adequada. Os sintomas emocionais e físicos afetam a forma como a criança se relaciona com o mundo, a construção da sua identidade e seus vínculos afetivos. Isso também pode interferir no desempenho escolar e na autoestima dela. Em casos mais graves, a criança pode até ter pensamentos suicidas ou recorrer à automutilação. A intervenção o quanto antes é essencial para minimizar esses danos.
JCV - Como abordar esse tema com a criança de maneira sensível?
Carine: Sem dúvida, é um grande desafio, mas é extremamente necessário. O mais importante é tratar o tema de forma leve, usando uma linguagem que a criança consiga entender. Um ponto fundamental é ensiná-la que o corpo dela é só dela e que existem partes do corpo que ninguém pode tocar, exceto em algumas situações específicas, como em consultas médicas ou banhos, mas sempre com a presença de um responsável e sem causar desconforto. Usar materiais lúdicos, como desenhos ou bonecos, é muito eficaz, pois ajuda a criança a entender de maneira mais acessível o que está sendo explicado. Também é importante ensinar os nomes corretos das partes do corpo, de acordo com o vocabulário dela, para que ela saiba se expressar caso precise contar algo. A palavra "desconforto" é fundamental para que a criança saiba o que fazer, caso sinta algo de errado, e possa comunicar isso aos responsáveis, sem medo ou culpa. Esse tipo de conversa não deve acontecer apenas uma vez ao ano, como em campanhas como a do Maio Laranja, mas deve ser contínua, de forma que a criança sempre se sinta confortável para falar sobre qualquer situação que a incomode.
JCV - Quais são os desafios mais comuns enfrentados pelos psicólogos ao trabalhar com crianças vítimas de abuso?
Carine: Um dos maiores desafios é ganhar a confiança da criança, pois ela teve sua confiança quebrada por alguém que deveria tê-la protegido. Muitas vezes, a criança chega muito assustada, sem conseguir se expressar em palavras, cheia de medo e desconfiança. Outro ponto difícil é lidar com o ambiente familiar. Em alguns casos, a própria família não acredita na criança, seja por medo, vergonha ou negação, principalmente quando o agressor é alguém muito próximo, que deveria ser um protetor. Mesmo com esses desafios, é fundamental mostrar para a criança que ela não está sozinha, que a dor dela é importante. É um processo que exige muita paciência e empatia.
Assistente Social Rafael Almeida fala sobre proteção infantil
A prevenção passa pelo fortalecimento das famílias. A gente atua orientando, escutando, apoiando em momentos de crise e, principalmente, garantindo acesso a direitos. Famílias em situação de pobreza extrema, violência doméstica ou uso abusivo de substâncias, por exemplo, precisam de apoio, não de julgamento”.
JCV - Qual é o papel do assistente social na identificação e encaminhamento de casos de abuso infantil?
Rafael: O assistente social atua como um elo entre a criança, a família e os serviços de proteção. Nosso papel é acolher com respeito, ouvir com sensibilidade e encaminhar o caso para os órgãos competentes, como o Conselho Tutelar e serviços especializados. Mas, mais do que isso, buscamos garantir que essa criança seja protegida e que seus direitos sejam respeitados em todas as etapas do processo.
JCV - Como funciona a rede de proteção à criança e ao adolescente em situações de violência?
Rafael: A rede de proteção é um conjunto de instituições, como escolas, unidades de saúde, CRAS, CREAS, Conselho Tutelar e Ministério Público, que trabalham juntas para garantir a segurança e o bem-estar da criança. Cada setor tem sua responsabilidade, e o mais importante é que haja comunicação entre todos. Quando um caso é identificado, ele deve ser acolhido e acompanhado por essa rede, que atua de forma articulada, colocando sempre a criança no centro das intervenções.
JCV - Como o assistente social pode atuar junto às famílias para prevenir situações de vulnerabilidade que podem levar ao abuso?
Rafael: A prevenção passa pelo fortalecimento das famílias. A gente atua orientando, escutando, apoiando em momentos de crise e, principalmente, garantindo acesso a direitos. Famílias em situação de pobreza extrema, violência doméstica ou uso abusivo de substâncias, por exemplo, precisam de apoio, não de julgamento. Trabalhamos para criar laços de confiança, estimular vínculos afetivos saudáveis e evitar que situações de risco se agravem. O cuidado com as famílias é o primeiro passo para cuidar das crianças.
JCV - Quais políticas públicas são essenciais para o enfrentamento efetivo do abuso infantil?
Rafael: Políticas que garantam proteção, cuidado e dignidade. O SUAS (Sistema Único de Assistência Social), o SUS (Sistema Único de Saúde), educação, através de escola pública de qualidade, os Conselhos Tutelares e os programas de transferência de renda são fundamentais. Além disso, precisamos de campanhas permanentes de conscientização e de investimentos em formação de profissionais. Combater o abuso não é responsabilidade de um setor só, é um compromisso coletivo, que depende de ação integrada.
JCV - De que forma o trabalho conjunto entre saúde, educação e assistência social fortalece a proteção da criança?
Rafael: Quando esses três setores se unem, a criança é vista por completo. A saúde cuida do corpo e da mente, a educação observa o comportamento e o aprendizado, e a assistência social atua nas relações familiares e comunitárias. Um professor atento, um agente de saúde sensível e um assistente social presente podem mudar a trajetória de uma criança. O trabalho intersetorial garante que nenhum sinal passe despercebido e que as intervenções sejam mais eficazes e humanizadas.